A História continua
Cláudio Campos
José Arbex, da “Folha de S.Paulo”, resolveu brindar-nos com os seus
fulgurantes talentos de filósofo, e afirmou que a “morte do marxismo decretada
por Mikhail Gorbatchev” enterrou a “herança positivista (concepção de que há um
sentido unívoco, progressista, na evolução histórica)”, da qual a
“weltanschauung (visão de mundo)” de Marx “foi, talvez, a vertente mais
radical”.
Atentai, filósofos! Desfraldai vossos pavilhões, que as nulidades
estão cada vez mais ousadas...
Em primeiro lugar, como você sabe muito bem, Arbex, o Gorbatchev não
decretou e não tem condições de “decretar” a morte de coisa nenhuma. Não por
acaso, certamente, ele continua se dizendo um marxista. Ele não matou, nem
poderia mesmo matar o marxismo. Ele morreu como marxista, o que é uma coisa
muito diferente, e antiga. Há quase 40 anos, em 1953, falecia também Nikita
Kruschev. Antes dele faleceram Bernstein, Kautsky, Trotsky, Tito e outros
fariseus. Isso não impediu - pelo contrário, facilitou - que uma multidão de
marxistas de qualidade muito superior à que eles jamais tiveram, ocupassem o seu
lugar.
Você
seria capaz de apostar um centavo conosco como é isso o que vai acontecer
agora?
Para acusar Marx de positivismo, é preciso
realmente não entender coisa alguma nem de Marx nem de
positivismo.
Arbex se propõe negar o “progresso” na “evolução histórica”, mas
ocorre que no próprio conceito de “evolução” já está implícita a idéia de
progresso que ele não aceita. É assim que nós descobrimos que o “positivismo” é
uma filosofia deveras atual e acaba de fazer um novo adepto: o José
Arbex.
Na verdade, porém, a idéia de um determinado progresso, de um sentido
geral no desenvolvimento histórico, não é o que caracteriza o positivismo,
enquanto corrente filosófica - das mais rastaqueras, por sinal. Essa é uma idéia
que está presente em absolutamente todas as filosofias que cumpriram, a seu
tempo, um papel revolucionário ou progressista. A negação do “sentido geral
progressista na evolução histórica” é exatamente a característica de todas as
filosofias reacionárias, que consideravam eterno o apodrecido “status quo”
social e político em que chafurdavam.
O que caracterizava o positivismo - como variante agnóstica - era
exatamente negar à
ciência a capacidade de investigar a causa dos fenômenos históricos, isto é, de
penetrar em profundidade na dinâmica dos fatos, e se contentar com a superfície
destes. Para negar a ciência, Auguste Comte chegou mesmo a inventar algo para
substitui-la, a “ciência positiva” - aquela que se recusa a enxergar a essência
por trás da aparência. Como toda corrente agnóstica, o positivismo estava muito
mais próximo do idealismo do que do materialismo, e era decididamente metafísico
- antidialético. A “ordem” e o “progresso” que Comte cantava nada mais eram do
que a perpetuação da ordem e do progresso burgueses. Eram, portanto, e na
verdade, a negação da idéia de evolução e progresso social. O positivismo
correspondeu a uma época em que a burguesia, na França, não era mais uma classe
revolucionária, mas ainda podia acreditar que a sociedade burguesa encarnasse o
progresso e o futuro. Hoje, o ultradecadente e degenerado capitalismo
imperialista não tem mais como se comprometer com qualquer idéia de progresso
histórico, e por isso até mesmo o reacionário Comte tomou-se um estorvo. (Por
uma questão de justiça, registremos que o positivismo pôde cumprir um papel
progressista e inclusive revolucionário no Brasil do final do século passado,
quando ainda éramos uma sociedade escravagista e
monárquica.)
O marxismo é exatamente a única corrente filosófica que nega
radicalmente o positivismo - ainda que não apenas ele, é claro. Como corrente
materialista, o marxismo sustenta que a ciência - isto é, a idéia - pode
conhecer, refletir e antecipar em profundidade os fenômenos históricos, suas
causas e desdobramentos, isto é, a realidade objetiva. Como corrente dialética,
o marxismo sustenta que a sociedade, assim como o homem, está em permanente
evolução, ainda que isso não se processe de forma
linear.
Antes de prosseguir, exponhamos de forma muito breve, para que o
Arbex possa nos acompanhar, a concepção marxista da
História, a concepção científica do desenvolvimento
histórico.
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Os homens aperfeiçoam e desenvolvem constantemente as suas forças produtivas, a sua capacidade de utilizar os elementos da natureza em seu beneficio.
-
No processo de produção dos seus meios materiais de subsistência, os homens estabelecem entre si e os meios de produção determinadas relações de produção, em especial determinadas relações de propriedade.
-
Há uma relação entre o nível alcançado de desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção mais adequadas ao aproveitamento delas. Quando o desenvolvimento das forças produtivas atinge determinado nível, as vigentes relações de produção e de propriedade dos meios de produção tomam-se obsoletas, freiam o processo produtivo, e demandam serem substituídas por novas relações de produção e de propriedade. Abre-se um período de revolução social, em que as classes sociais beneficiadas pelas antigas relações de produção, as antigas classes proprietárias, resistem à mudança tornada indispensável, e as classes sociais capazes de encarnar as novas relações de produção e de propriedade se batem por elas. Dessa forma, a sociedade primitiva deu lugar ao escravagismo, este foi substituído pelo feudalismo, e mais tarde surgiu o capitalismo - para citar apenas os modos de produção fundamentais até então.
-
Há mais de um século o capitalismo entrou em franco processo de decadência, freando o desenvolvimento das forças produtivas sociais. Esse processo se agravou com o surgimento do imperialismo, contrafação apodrecida do capitalismo. Tal fato se evidencia hoje com as principais potências capitalistas se desenvolvendo há várias décadas a índices cada vez mais vegetativos. Por que tipo de relações de produção e de propriedade o capitalismo poderá ser substituído? Vejamos: a contradição fundamental do capitalismo, aquilo que freia o desenvolvimento de suas forças produtivas, é a contradição existente entre o caráter cada vez mais social da produção - cada um produz para muitos e depende de muitos para produzir - e o caráter cada vez mais privado da apropriação do que é produzido.
A concentração dos capitais é cada vez maior. Cada capitalista
depende de muitos outros para a produção de suas empresas, mas controla
unicamente a produção destas. É essa contradição que torna inevitável no
capitalismo as desproporções, os desequilíbrios, as crises e a destruição de
forças produtivas que elas acarretam, a formação de monopólios e a consequente
obstrução da concorrência e do progresso tecnológico, o imperialismo e a guerra
imperialista. Portanto, é fundamentalmente essa contradição que é preciso
superar para desobstruir o desenvolvimento das forças produtivas. Já que é
impossível reverter o crescente caráter social da produção, a única forma de
superar a contradição é através da socialização também da apropriação - com os
bens produzidos apropriados em comum sendo distribuídos, numa primeira fase,
segundo a quantidade e a qualidade do trabalho de cada um. Ao novo modo de
produzir baseado nessas novas relações de produção convencionou-se chamar
"comunismo”, e a essa sua primeira fase, "socialismo”.
Como se vê, não há nada de “arbitrário”, dogmático, metafísico, na
convicção de que o comunismo substituirá inevitavelmente o capitalismo - ainda
que isso implique também inevitavelmente numa dura luta política e social. Essa
convicção é fruto de uma observação, estudo e análise puramente científica da
realidade.
Ela também não implica em qualquer negação do livre arbítrio dos
homens. Pelo contrário, só as mentes mais livres que a Humanidade foi capaz de
gerar até hoje seriam capazes de conceber o comunismo, isto é, a solução das
contradições do capitalismo. O comunismo é exatamente
o mais belo, liberto e generoso fruto do livre arbítrio do
Homem.
Marx não foi apenas, como quer o Arbex, um homem “genial”,
“brilhante”, “sarcástico”!, etc.. Ele foi o fundador das ciências sociais. Não
existe ciência social fora do “marxismo”. Como todas as demais ciências, ela
demanda desenvolvimento constantemente. Disso cuidaram muito bem Engels, Lenin e Stalin, para citar apenas os mais brilhantes até
aqui. Disso têm cuidado os verdadeiros revolucionários nos últimos 40
anos.
Poderia haver alguma dúvida sobre o caráter científico das teses de
Marx, quando ele foi capaz de prever com quase um século de antecedência o
início da transição da Humanidade do capitalismo para o comunismo? É claro que
as antigas classes proprietárias, sua imprensa, etc.., têm muita dificuldade de
perceber esse fato evidente, clamoroso, tonitruante, mas também isso não é nada
mais do que uma confirmação do que disse Marx.
Arbex pretende que o período de retrocesso iniciado na URSS por
Kruschev, e a crise em que ele desembocou sob Gorbatchev, demonstram que Marx
estava errado. Ora! Marx jamais pretendeu que o desenvolvimento histórico se
desse de forma linear, sem marchas e contra-marchas, avanços e retrocessos,
ascensos e descensos, etc.. Ele sempre disse o contrário. Lenin afirmou que
seria preciso “iniciar várias vezes” a construção do socialismo. Agora, sequer
se trata de reiniciar. Kruschev rompeu com o marxismo em vários pontos
fundamentais: caráter do Estado, do partido, mobilização e luta política na
transição do socialismo para o comunismo, caráter do imperialismo, das guerras
imperialistas, leis econômicas do socialismo, etc.. Se a geringonça que ele
montou tivesse dado certo, aí sim, poderíamos dizer que Marx falhou. O fato de
não ter dado é exatamente uma confirmação a mais da precisão científica das
teses de Marx, Engels, Lenin e Stalin.
O Arbex acha que “a tese marxista fracassou
ali onde teve a chance de provar sua enunciada superioridade sobre o
capitalismo. Em nenhum [outro país] houve um processo tão radical como o da URSS
na via da ruptura com o capitalismo”. Não, não fracassou não, Arbex. Enquanto
ela foi aplicada, até o início da década de 50, ela demonstrou de forma
espetacular essa superioridade. Depois disso, mesmo tergiversado, falseado,
esculhambado, o socialismo continuou sendo superior ao capitalismo. Mas ele não
pode se sustentar, se seus princípios não são
respeitados.
De fato, foi na URSS, até a época citada, que as relações de produção
socialistas tiveram mais chance de avançar. Agradecemos o reconhecimento
implícito da correção da política de Lenin e Stalin. A URSS aproveitou bem a
chance. Foi lá, até os anos 50, que essas relações de produção mais se
desenvolveram. Mas essa foi apenas a melhor chance até agora, Arbex. Não foi nada de
espetacular, não. Parece que você esqueceu alguns pequeninos detalhes sobre essa
chance. Esqueceu a agressão imposta ao socialismo nascente pelos exércitos de 14
países. Esqueceu a mais brutal agressão militar da História, imposta ao
socialismo recém-construído pelo capitalismo nazi-fascista, atiçado e apoiado
por monopólios do mundo inteiro. Essas agressões, mais a primeira guerra
imperialista, custaram ao povo soviético algo entre 50 e 60 milhões de mortos,
em sua maioria homens na idade ativa. Um genocídio sem precedentes e sem
paralelo.
Esqueceu a guerra-fria, as suas próprias catilinárias contra o
socialismo, a chantagem nuclear, um monte de coisas... E com tudo isso, o
socialismo na URSS chegou até aqui. A criança não morreu. Ela está muito mal,
mas está viva. E, com toda a sinceridade, temos a impressão de que vocês não
conseguirão matá-la. Em várias partes do mundo menos atingidas pelo vosso ódio e
pela vossa ignorância, irmãos, primos, aparentados e amigos do primogênito,
muitos dos quais lhe devem a própria vida, estão dispostos a tudo que estiver ao
seu alcance para salvá-lo.
Como você certamente não ignora, vai ser muito mais difícil para
vocês restaurarem o capitalismo na URSS, do que para a
classe operária soviética reencontrar o socialismo
pleno.
Novas chances virão, Arbex. A História
continua.
Chances melhores do que a Humanidade teve até aqui. O imperialismo
está muito mais apodrecido, muito mais frágil - apesar de todas as suas bombas
atômicas e “inteligentes” - do que estava há meio século atrás. Nas atuais
condições históricas, dificilmente uma nova revolução socialista terá de passar
tanto tempo isolada quanto passou a heroica e martirizada revolução soviética.
Quanto a nós, temos uma colossal experiência positiva e negativa para
sintetizar, e o estamos fazendo.
Você diz que “o mundo não é um laboratório de experiências
políticas”. Não? E o que é então? Laboratório é onde se labora. E onde se labora
ganha-se experiência. É realmente comovedora a sua preocupação com a integridade
do mundo, em definir o que ele é e o que deixa de ser. Certamente você o prefere
como um campo de provas para as bombas de Hiroshima e Nagasaki, as bombas de
napalm e de nêutrons, as nucleares “táticas” e as estratégicas, a guerra
bacteriológica, os “Idiots”, os “Phantoms”, os “Tomcats”, etc.. Certamente você
acha que afinal de contas o mundo não está assim tão mal, de formas que não se
deve arriscar nada que não tenha sucesso garantido e para todo o
sempre.
Depois de quatro séculos de experiência capitalista, o feudalismo
ainda está presente não apenas nos recônditos do planeta, mas no centro de
impérios tão decantados como o japonês e o inglês, com as suas ridículas e
bolorentas rainhas, imperadores, cetros e coroas. Mas ao socialismo - uma
mudança infinitamente mais profunda do que a do feudalismo para o capitalismo -
você está disposto a conceder apenas uma, duas, ou, no máximo, três
chances.
Nós agradecemos a sua boa vontade, Arbex, mas vamos continuar a nossa
luta. E, por muito que isso desagrade a você e a todos os reacionários, a nossa
vitória é absolutamente inevitável. Porque, mesmo na remotíssima hipótese de que
vocês conseguissem destruir a Humanidade, ela ressurgiria algum dia, em algum
lugar, à busca, como sempre, do progresso, da liberdade e da
justiça.
Publicado na HORA DO POVO em 8 de agosto de
1991.
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