sexta-feira, 15 de abril de 2011

A História continua



A História continua

Cláudio Campos
José Arbex, da “Folha de S.Paulo”, resolveu brindar-nos com os seus fulgurantes talentos de filósofo, e afirmou que a “morte do marxismo decretada por Mikhail Gorbatchev” enterrou a “herança positivista (concepção de que há um sentido unívoco, progressista, na evolução histórica)”, da qual a “weltanschauung (visão de mundo)” de Marx “foi, talvez, a vertente mais radical”.

Atentai, filósofos! Desfraldai vossos pavilhões, que as nulidades estão cada vez mais ousadas...

Em primeiro lugar, como você sabe muito bem, Arbex, o Gorbatchev não decretou e não tem condições de “decretar” a morte de coisa nenhuma. Não por acaso, certamente, ele continua se dizendo um marxista. Ele não matou, nem poderia mesmo matar o marxismo. Ele morreu como marxista, o que é uma coisa muito diferente, e antiga. Há quase 40 anos, em 1953, falecia também Nikita Kruschev. Antes dele faleceram Bernstein, Kautsky, Trotsky, Tito e outros fariseus. Isso não impediu - pelo contrário, facilitou - que uma multidão de marxistas de qualidade muito superior à que eles jamais tiveram, ocupassem o seu lugar.

Você seria capaz de apostar um centavo conosco como é isso o que vai acontecer agora?

Para acusar Marx de positivismo, é preciso realmente não entender coisa alguma nem de Marx nem de positivismo.

Arbex se propõe negar o “progresso” na “evolução histórica”, mas ocorre que no próprio conceito de “evolução” já está implícita a idéia de progresso que ele não aceita. É assim que nós descobrimos que o “positivismo” é uma filosofia deveras atual e acaba de fazer um novo adepto: o José Arbex.

Na verdade, porém, a idéia de um determinado progresso, de um sentido geral no desenvolvimento histórico, não é o que caracteriza o positivismo, enquanto corrente filosófica - das mais rastaqueras, por sinal. Essa é uma idéia que está presente em absolutamente todas as filosofias que cumpriram, a seu tempo, um papel revolucionário ou progressista. A negação do “sentido geral progressista na evolução histórica” é exatamente a característica de todas as filosofias reacionárias, que consideravam eterno o apodrecido “status quo” social e político em que chafurdavam.

O que caracterizava o positivismo - como variante agnóstica - era exatamente negar à ciência a capacidade de investigar a causa dos fenômenos históricos, isto é, de penetrar em profundidade na dinâmica dos fatos, e se contentar com a superfície destes. Para negar a ciência, Auguste Comte chegou mesmo a inventar algo para substitui-la, a “ciência positiva” - aquela que se recusa a enxergar a essência por trás da aparência. Como toda corrente agnóstica, o positivismo estava muito mais próximo do idealismo do que do materialismo, e era decididamente metafísico - antidialético. A “ordem” e o “progresso” que Comte cantava nada mais eram do que a perpetuação da ordem e do progresso burgueses. Eram, portanto, e na verdade, a negação da idéia de evolução e progresso social. O positivismo correspondeu a uma época em que a burguesia, na França, não era mais uma classe revolucionária, mas ainda podia acreditar que a sociedade burguesa encarnasse o progresso e o futuro. Hoje, o ultradecadente e degenerado capitalismo imperialista não tem mais como se comprometer com qualquer idéia de progresso histórico, e por isso até mesmo o reacionário Comte tomou-se um estorvo. (Por uma questão de justiça, registremos que o positivismo pôde cumprir um papel progressista e inclusive revolucionário no Brasil do final do século passado, quando ainda éramos uma sociedade escravagista e monárquica.)

O marxismo é exatamente a única corrente filosófica que nega radicalmente o positivismo - ainda que não apenas ele, é claro. Como corrente materialista, o marxismo sustenta que a ciência - isto é, a idéia - pode conhecer, refletir e antecipar em profundidade os fenômenos históricos, suas causas e desdobramentos, isto é, a realidade objetiva. Como corrente dialética, o marxismo sustenta que a sociedade, assim como o homem, está em permanente evolução, ainda que isso não se processe de forma linear.
Antes de prosseguir, exponhamos de forma muito breve, para que o Arbex possa nos acompanhar, a concepção marxista da História, a concepção científica do desenvolvimento histórico.
    1. Os homens aperfeiçoam e desenvolvem constantemente as suas forças produtivas, a sua capacidade de utilizar os elementos da natureza em seu beneficio.
    1. No processo de produção dos seus meios materiais de subsistência, os homens estabelecem entre si e os meios de produção determinadas relações de produção, em especial determinadas relações de propriedade.
    1. Há uma relação entre o nível alcançado de desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção mais adequadas ao aproveitamento delas. Quando o desenvolvimento das forças produtivas atinge determinado nível, as vigentes relações de produção e de propriedade dos meios de produção tomam-se obsoletas, freiam o processo produtivo, e demandam serem substituídas por novas relações de produção e de propriedade. Abre-se um período de revolução social, em que as classes sociais beneficiadas pelas antigas relações de produção, as antigas classes proprietárias, resistem à mudança tornada indispensável, e as classes sociais capazes de encarnar as novas relações de produção e de propriedade se batem por elas. Dessa forma, a sociedade primitiva deu lugar ao escravagismo, este foi substituído pelo feudalismo, e mais tarde surgiu o capitalismo - para citar apenas os modos de produção fundamentais até então.
    2.    Há mais de um século o capitalismo entrou em franco processo de decadência, freando o desenvolvimento das forças produtivas sociais. Esse processo se agravou com o surgimento do imperialismo, contrafação apodrecida do capitalismo. Tal fato se evidencia hoje com as principais potências capitalistas se desenvolvendo há várias décadas a índices cada vez mais vegetativos. Por que tipo de relações de produção e de propriedade o capitalismo poderá ser substituído? Vejamos: a contradição fundamental do capitalismo, aquilo que freia o desenvolvimento de suas forças produtivas, é a contradição existente entre o caráter cada vez mais social da produção - cada um produz para muitos e depende de muitos para produzir - e o caráter cada vez mais privado da apropriação do que é produzido.
A concentração dos capitais é cada vez maior. Cada capitalista depende de muitos outros para a produção de suas empresas, mas controla unicamente a produção destas. É essa contradição que torna inevitável no capitalismo as desproporções, os desequilíbrios, as crises e a destruição de forças produtivas que elas acarretam, a formação de monopólios e a consequente obstrução da concorrência e do progresso tecnológico, o imperialismo e a guerra imperialista. Portanto, é fundamentalmente essa contradição que é preciso superar para desobstruir o desenvolvimento das forças produtivas. Já que é impossível reverter o crescente caráter social da produção, a única forma de superar a contradição é através da socialização também da apropriação - com os bens produzidos apropriados em comum sendo distribuídos, numa primeira fase, segundo a quantidade e a qualidade do trabalho de cada um. Ao novo modo de produzir baseado nessas novas relações de produção convencionou-se chamar "comunismo”, e a essa sua primeira fase, "socialismo”.

Como se vê, não há nada de “arbitrário”, dogmático, metafísico, na convicção de que o comunismo substituirá inevitavelmente o capitalismo - ainda que isso implique também inevitavelmente numa dura luta política e social. Essa convicção é fruto de uma observação, estudo e análise puramente científica da realidade.
Ela também não implica em qualquer negação do livre arbítrio dos homens. Pelo contrário, só as mentes mais livres que a Humanidade foi capaz de gerar até hoje seriam capazes de conceber o comunismo, isto é, a solução das contradições do capitalismo. O comunismo é exatamente o mais belo, liberto e generoso fruto do livre arbítrio do Homem.

Marx não foi apenas, como quer o Arbex, um homem “genial”, “brilhante”, “sarcástico”!, etc.. Ele foi o fundador das ciências sociais. Não existe ciência social fora do “marxismo”. Como todas as demais ciências, ela demanda desenvolvimento constantemente. Disso cuidaram muito bem Engels, Lenin e Stalin, para citar apenas os mais brilhantes até aqui. Disso têm cuidado os verdadeiros revolucionários nos últimos 40 anos.
Poderia haver alguma dúvida sobre o caráter científico das teses de Marx, quando ele foi capaz de prever com quase um século de antecedência o início da transição da Humanidade do capitalismo para o comunismo? É claro que as antigas classes proprietárias, sua imprensa, etc.., têm muita dificuldade de perceber esse fato evidente, clamoroso, tonitruante, mas também isso não é nada mais do que uma confirmação do que disse Marx.

Arbex pretende que o período de retrocesso iniciado na URSS por Kruschev, e a crise em que ele desembocou sob Gorbatchev, demonstram que Marx estava errado. Ora! Marx jamais pretendeu que o desenvolvimento histórico se desse de forma linear, sem marchas e contra-marchas, avanços e retrocessos, ascensos e descensos, etc.. Ele sempre disse o contrário. Lenin afirmou que seria preciso “iniciar várias vezes” a construção do socialismo. Agora, sequer se trata de reiniciar. Kruschev rompeu com o marxismo em vários pontos fundamentais: caráter do Estado, do partido, mobilização e luta política na transição do socialismo para o comunismo, caráter do imperialismo, das guerras imperialistas, leis econômicas do socialismo, etc.. Se a geringonça que ele montou tivesse dado certo, aí sim, poderíamos dizer que Marx falhou. O fato de não ter dado é exatamente uma confirmação a mais da precisão científica das teses de Marx, Engels, Lenin e Stalin.

O Arbex acha que “a tese marxista fracassou ali onde teve a chance de provar sua enunciada superioridade sobre o capitalismo. Em nenhum [outro país] houve um processo tão radical como o da URSS na via da ruptura com o capitalismo”. Não, não fracassou não, Arbex. Enquanto ela foi aplicada, até o início da década de 50, ela demonstrou de forma espetacular essa superioridade. Depois disso, mesmo tergiversado, falseado, esculhambado, o socialismo continuou sendo superior ao capitalismo. Mas ele não pode se sustentar, se seus princípios não são respeitados.

De fato, foi na URSS, até a época citada, que as relações de produção socialistas tiveram mais chance de avançar. Agradecemos o reconhecimento implícito da correção da política de Lenin e Stalin. A URSS aproveitou bem a chance. Foi lá, até os anos 50, que essas relações de produção mais se desenvolveram. Mas essa foi apenas a melhor chance até agora, Arbex. Não foi nada de espetacular, não. Parece que você esqueceu alguns pequeninos detalhes sobre essa chance. Esqueceu a agressão imposta ao socialismo nascente pelos exércitos de 14 países. Esqueceu a mais brutal agressão militar da História, imposta ao socialismo recém-construído pelo capitalismo nazi-fascista, atiçado e apoiado por monopólios do mundo inteiro. Essas agressões, mais a primeira guerra imperialista, custaram ao povo soviético algo entre 50 e 60 milhões de mortos, em sua maioria homens na idade ativa. Um genocídio sem precedentes e sem paralelo.
Esqueceu a guerra-fria, as suas próprias catilinárias contra o socialismo, a chantagem nuclear, um monte de coisas... E com tudo isso, o socialismo na URSS chegou até aqui. A criança não morreu. Ela está muito mal, mas está viva. E, com toda a sinceridade, temos a impressão de que vocês não conseguirão matá-la. Em várias partes do mundo menos atingidas pelo vosso ódio e pela vossa ignorância, irmãos, primos, aparentados e amigos do primogênito, muitos dos quais lhe devem a própria vida, estão dispostos a tudo que estiver ao seu alcance para salvá-lo.

Como você certamente não ignora, vai ser muito mais difícil para vocês restaurarem o capitalismo na URSS, do que para a classe operária soviética reencontrar o socialismo pleno.
Novas chances virão, Arbex. A História continua.

Chances melhores do que a Humanidade teve até aqui. O imperialismo está muito mais apodrecido, muito mais frágil - apesar de todas as suas bombas atômicas e “inteligentes” - do que estava há meio século atrás. Nas atuais condições históricas, dificilmente uma nova revolução socialista terá de passar tanto tempo isolada quanto passou a heroica e martirizada revolução soviética. Quanto a nós, temos uma colossal experiência positiva e negativa para sintetizar, e o estamos fazendo.

Você diz que “o mundo não é um laboratório de experiências políticas”. Não? E o que é então? Laboratório é onde se labora. E onde se labora ganha-se experiência. É realmente comovedora a sua preocupação com a integridade do mundo, em definir o que ele é e o que deixa de ser. Certamente você o prefere como um campo de provas para as bombas de Hiroshima e Nagasaki, as bombas de napalm e de nêutrons, as nucleares “táticas” e as estratégicas, a guerra bacteriológica, os “Idiots”, os “Phantoms”, os “Tomcats”, etc.. Certamente você acha que afinal de contas o mundo não está assim tão mal, de formas que não se deve arriscar nada que não tenha sucesso garantido e para todo o sempre.

Depois de quatro séculos de experiência capitalista, o feudalismo ainda está presente não apenas nos recônditos do planeta, mas no centro de impérios tão decantados como o japonês e o inglês, com as suas ridículas e bolorentas rainhas, imperadores, cetros e coroas. Mas ao socialismo - uma mudança infinitamente mais profunda do que a do feudalismo para o capitalismo - você está disposto a conceder apenas uma, duas, ou, no máximo, três chances.

Nós agradecemos a sua boa vontade, Arbex, mas vamos continuar a nossa luta. E, por muito que isso desagrade a você e a todos os reacionários, a nossa vitória é absolutamente inevitável. Porque, mesmo na remotíssima hipótese de que vocês conseguissem destruir a Humanidade, ela ressurgiria algum dia, em algum lugar, à busca, como sempre, do progresso, da liberdade e da justiça.

Publicado na HORA DO POVO em 8 de agosto de 1991.

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