Em Kiev, na Ucrânia, continuam os confrontos, habituais desde o final de Novembro, entre a polícia e os manifestantes. Em causa está o braço de ferro entre o Governo (que suspendeu a assinatura do Tratado de Livre Associação com a União Europeia) e a oposição que procura liderar os protestos, tentando daí tirar dividendos políticos. Nos últimos meses tem sido crescente o peso do partido fascista Svoboda que integra a coligação oposicionista. Para os anarquistas ucranianos, apesar de criticarem a actuação do governo, os trabalhadores estão fora deste jogo político entre os partidários de um maior relacionamento com a União Europeia e os que defendem uma maior integração com a economia russa. A entrevista que traduzimos e de que publicamos excertos foi dada por um companheiro anarco-sindicalista da Organização Autónoma de Trabalhadores da Ucrânia (um pequeno grupo que desenvolve a sua actividade em Kiev e em Harkov, a segunda cidade mais industrializada da Ucrânia), a uma rádio norte-americana. No entanto, a presença de militantes libertários nas ruas, em protesto contra as medidas autoritárias e repressivas do governo ucraniano, tem sido também uma constante.
Anarquista ucraniano dissipa mitos sobre os protestos na Ucrânia e alerta para a influência fascista
A Radio Asheville , com base no oeste da Carolina do Norte,emitiu recentemente uma fascinante entrevista com um anarco-sindicalista chamado Denys, da Organização Autónoma dos Trabalhadores da Ucrânia. Nesta entrevista Denys desmascara muitos dos mitos em torno dos protestos a favor da adesão à União Europeia que se estão a verificar no país e explica o que se está a passar nos bastidores e a propaganda que tem sido feita a propósito protestos.
Porque é que o Acordo de Livre Associação com a UE (que beneficiaria, sobretudo, os ultra-ricos oligarcas da Ucrânia) está a ser deliberadamente interpretado como uma verdadeira integração? Os líderes ucranianos recusaram assiná-lo no último minuto. Entretanto, a Rússia está a tentar empurrar a Ucrânia para a sua união aduaneira, oferecendo a Kiev um acordo com a promessa de compra de milhões de euros de produtos ucranianos e um desconto de 30 por cento no Gás Natural russo.
Denys explica que, quando os protestos começaram, a classe política ucraniana foi apanhada de surpresa. Contudo, a oposição, uma coligação orientada sobretudo para a direita (sendo o partido fascista Svoboda o mais visível de todos eles) reagrupou-se rapidamente e transformou a rua na sua máquina de relações públicas. A oposição planeou manifestações massivas, como o líder fascista do Svoboda declarou numa entrevista já em março de 2013. Ficou evidente que os líderes da oposição planearam derrubar o actual governo com o apoio financeiro e político da conservadora Angela Merkel, da Alemanha, dos líderes da UE de Bruxelas e com o apoio visível dos Estados Unidos, cujo embaixador , o conservador John McCain foi a estrela convidada do Euromaidan . (…)
É difícil dizer quem está em maior desespero – se o governo ou se a oposição, mas esta última já anunciou que se vai centrar nas próximas eleições presidenciais , previstas para daqui a 18 meses, embora não seja ainda muito claro o candidato que vai apoiar . (…)
(No entanto), a oposição usou os protestos de rua contra o governo para ganhar poder na Ucrânia. Os resultados têm sido muito proveitosos para o partido Svoboda. No dia 1 de janeiro, o Svoboda organizou uma marcha de mais de 15.000 nacionalistas para comemorar o aniversário do antigo colaboracionista nazi já falecido Stepan Bandera .(…)
Denys : É necessário distinguir entre os dois Euromaidans. O primeiro ocorreu a 21 de novembro, participaram pessoas de classe média, que na sua maioria queriam a assinatura do acordo com a União Europeia. No entanto, hoje, dois meses depois, a maioria das pessoas que estão nas ruas estão preocupadas com questões bem mais práticas, como a brutalidade da polícia, que foi visível na noite de 1 de dezembro e, na generalidade, ninguém está satisfeito nem com o governo nem com o presidente. Assim, a integração europeia continua a ser uma questão mais vasta, mas está hoje numa espécie de segundo lugar. Quando se tratava de manifestações pró-governo as pessoas eram levadas pelo governo para Kiev, em autocarros, ao fim de semana. Estes protestos não foram honestos. Muitas pessoas que trabalham para o governo, como professores, médicos, e assim por diante, foram informados pelos chefes que teriam que participar. Era obrigatório para eles. Não diria que fosse um protesto real. Mas tomando em conta as pessoas que apoiam a união com a Rússia, a Bielorússia e o Casaquistão, sim, há essa opinião e, tomando o país como um todo, está dividido mais ou menos em 50 por cento relativamente à integração na União Europeia ou na União Aduaneira (com a Rússia). O problema é que a segunda posição não está muito representada nos meios de comunicação de massa que se inclinam no outro sentido (pró-UE). E, geralmente, essas pessoas que apoiam a união aduaneira não têm o hábito de protestar. Elas vivem em cidades mais pequenas e, portanto, não estão tão representadas nos media como quem vive na capital. Os apoiantes da União Aduaneira têm também líderes políticos muito estúpidos. Por exemplo, a principal força política que organizou os protestos teve como principal ponto de propaganda anti-UE dizer que a União Europeia iria trazer o casamento entre pessoas do mesmo sexo e outras coisas fora da tradição que não seriam bem acolhidas pela população ucraniana. Até inventaram o termo “euroSodoma”, como em Sodoma e Gomorra. A outra força política que apoia a União Aduaneira é o Partido Comunista da Ucrânia, que há muitos anos não tem nada a ver com o comunismo, e cujo programa político e agenda podem ser descritos como um partido social-conservador normal. Se comparar com Marie Le Pen, não encontrará muitas diferenças.
Asheville Rádio FM: É, na visão desses grupos, uma espécie de regresso à era soviética e ao encontro de outros países do leste europeu?
Denys : Claro, especulam sobre isso, porque os laços entre as pessoas comuns ainda são muito fortes. Você sabe que muitas pessoas têm parentes na Rússia, para não mencionar coisas como a cultura de massas que é comum. Muitas pessoas vêem os canais de televisão russos, e isso é muito habitual na vida de todos os dias das pessoas das regiões do centro, do leste e do sul. As pessoas na região do centro e do sul têm muitas coisas em comum com os russos, com o seu estilo de vida, e não sentem que essas semelhanças existam com os povos europeus. Mas, ao mesmo tempo, uma grande parte da população da Ucrânia vive actualmente no exterior, na União Europeia , especialmente em Espanha , Itália, Polónia, República Checa e Portugal. São pessoas principalmente das regiões ocidentais, mas não exclusivamente.
Radio Fm Asheville : Entre os partidários versus os detractores da inclusão na UE, posso ver uma divisão segundo normas sociais, tal como mencionou, os mais liberais talvez a inclinarem-se mais para o Ocidente, com as suas leis mais progressistas e com os casamentos entre pessoas do mesmo sexo e do outro lado, à direita, os mais conservadores, os mais inclinados para os ortodoxos – ainda que seja uma igreja ortodoxa diferente da igreja ortodoxa russa – e estou seguro de que, dependendo donde está ou em que indústria trabalha, você irá ter mais negócios, em geral, ou com o Oriente ou com o Ocidente. Você pensa que as duas posições se destinam, basicamente, a liberalizar a economia e a enfraquecer os direitos dos trabalhadores ucranianos, ou é uma espécie de falsa escolha para os trabalhadores da Ucrânia?
Denys : Antes do mais você referiu-se ao liberalismo social prevalecente entre os ucranianos pró-UE. Na realidade não concordo com isso. Há essa impressão porque os protestos pró-UE são dirigidos por pessoas com estudos, da classe média, que têm um tipo de agenda mais social-liberal. Mas, mesmo assim, é mais a direita cultural contra a direita cultural. Veja-se, por exemplo: regularmente as pessoas no Euromaiden rezam publicamente, todas juntas, todas juntas. Olhemos, então, o casamento de pessoas do mesmo sexo: os que defendem a integração na UE nunca o aceitarão. De facto, as questões sociais relativas aos direitos dos trabalhadores não estão, de todo, na agenda. A classe operária, como classe, não participa de modo algum nestes acontecimentos. Os trabalhadores tomam naturalmente partido, mas não estão organizados enquanto classe, em sindicatos, e, por isso, como tal, simplesmente não tomam parte nestes eventos. E têm boas razões para isso, porque ambos os lados apenas falam de questões culturais, políticas, que não têm qualquer ligação directa com as necessidades de um trabalhador normal. Os manifestantes que apoiam a UE têm a ideia, absolutamente falsa, da Europa como um paraíso onde tudo está bem, onde tudo está muito melhor do que na Ucrânia ou em qualquer outro lugar. É inútil falar-lhes dos protestos no seio da própria UE, dos programas de austeridade. Eles simplesmente não ouvem e dizem: “Ah, então para você seria juntarmo-nos à Rússia, não é?” Portanto, esta falsa escolha é bastante limitativa, e acho que o mesmo podia ser dito sobre o lado oposto. A agenda de esquerda, a agenda dos direitos dos trabalhadores, não está presente em qualquer destas praças onde as pessoas protestam. (…)
Radio Fm Asheville : Encontrei o site de Dimitrov Kutchinsky , esse tipo é louco. Há ali também referências ao nacional – anarquismo.
Denys : Você está familiarizado com esse conceito?
Radio Fm Asheville : Sim, existem também alguns idiotas que afirmam ser isso aqui nos Estados Unidos . Em San Francisco, Nova York e Chicago. Eles têm algum peso na Ucrânia?
Denys : Sim, na verdade têm. Porque, infelizmente, esta é uma tendência muito comum – fazer uma mistura com temas de esquerda, com a adopção duma narrativa anticapitalista. O ser-se anarquista está na moda, é muito elegante, cool e dá-lhes algumas vantagens imediatas, mas as pessoas misturam isso com temas nacionais, que também estão muito na moda e são muito coolpara os jovens, sobretudo para os adolescentes que não vêem qualquer problema em tentarem combinar essas coisas. E isso é especialmente engraçado aqui na Ucrânia, porque existe um grande mito à volta de Makhno. Hoje ele é parte integrante do mito nacional e é considerado um nacionalista, porque na verdade lutou contra os bolcheviques. Por isso, considera-se que ele pertence à Ucrânia, à Ucrânia independente, tem um papel nacional e assim por diante. Obviamente, isto é um total absurdo, mas essa mitologia é muito popular e contribui para a popularidade que aqui tem a síntese entre a esquerda-direita, a chamada terceira posição, como Terza Posizione, que é de facto a tradição fascista italiana.
Radio Fm Asheville : Sim, é o mesmo palavreado que eles usam nos Estados Unidos: “third positionists”. Existe também uma grande sobreposição entre o nacionalismo e a ecologia biocêntrica regional, de modo que parecem estar a invadir o Anarquismo Verde, tentando transformarem-se na corrente principal e antes da maior parte das pessoas se darem conta de quem eles são e o que fazem.
Denys : Compreendo, mas aqui na Ucrânia, para além dos temas da New Age, eles têm também muito fascínio pelos próprios fascistas, como Mussolini, por exemplo. Tentam, de alguma forma, misturá-lo com o anarquismo. Para além disso, você está a par da divisão no movimento anarquista russo que aconteceu recentemente?
Radio Fm Asheville : Não, realmente não.
Denys : Bem, houve uma grande divisão que se repete também na Ucrânia. É a divisão entre os anarquistas que defendem os direitos das minorias, a luta feminista, que prestam atenção às questões gerais da sociedade, aos direitos para as minorias étnicas e os macho-anarquistas que não gostam destas “p….s feministas. ” Eles dizem: ‘ Nós somos tipos porreiros, fazemos muito desporto, somos verdadeiros anarquistas, não queremos nada a ver com essas bichas” . Infelizmente, este macho-anarquismo também está aqui a ganhar muita popularidade nos últimos tempos. (…)
Asheville Rádio FM: Fale-nos sobre o grupo a que pertence, à sua organização.
Denys : O nosso grupo foi fundado há dois anos, e ainda não é muito grande. Mas diria que temos tido, de facto, algum crescimento quer em termos de qualidade, quer de quantidade, porque estamos hoje implantados em dois sítios, um em Kiev e outro em Harkov, que é a segunda maior cidade industrial da Ucrânia. Temos cerca de 20-25 pessoas em Kiev e talvez 15 pessoas em Harkov. Estes não são números astronómicos, mas são maiores do que já foram inicialmente, e acho que estamos a crescer. Nós não nos vemos como um grupo de propaganda política, mais como uma organização de classe. Guiamo-nos pelos princípios do sindicalismo revolucionário, embora o nosso grupo se esteja a tornar cada vez mais anarco-sindicalista. No início tivemos alguns trotskystas e alguns marxistas, mas agora acho que a maioria deles já se consideram anarquistas. Mas, infelizmente, ainda não temos qualquer organização nos locais de trabalho, já que de acordo com a legislação ucraniana, para ela existir é preciso haver pelo menos 3 pessoas em cada local de trabalho. Temos pessoas de diferentes áreas, muitas sem nenhum posto de trabalho fixo, como trabalhadores sazonais ou trabalhadores da construção civil, etc.. Esse é o nosso maior problema e hoje funcionamos na realidade mais como um grupo de propaganda, embora queiramos ser uma verdadeira união de classe, como os IWW, esse é o modelo que pretendemos.
Asheville Rádio FM: Para os ouvintes que não estão familiarizados com o anarco- sindicalismo, gostaria que nos dissesse de que se trata e como é que ele se compara e difere do sindicalismo revolucionário?
Denys : O sindicalismo, enquanto método, assenta na negação de partidos e da política parlamentar como instrumentos capazes de alcançarem qualquer objectivo político. A tónica principal é colocada sobre instrumentos de acção directa, como greves, manifestações, ocupações e assim por diante. O principal desafio do sindicalismo, de per si, é encontrar uma estratégia de ligação entre a luta política e económica e a luta dos sindicatos, das uniões. Assim, ao contrário do trade-unionismo ou do trabalhismo como na Grã-Bretanha, os sindicalistas acreditam que os sindicatos devem ter objectivos políticos em paralelo com os objectivos económicos. Devem lutar, por exemplo, por salários mais altos, mas não se devem esquecer que, em simultâneo, estão a lutar, eventualmente, pelo comunismo, pela queda do capitalismo. Na teoria sindicalista, chamamos a isso ginástica revolucionária .
Radio Fm Asheville : Nunca tinha ouvido essa frase antes.
Denys : A ginástica revolucionária é a luta de todos os dias por pequenas reformas, mas que ao mesmo tempo desenvolve os músculos da classe trabalhadora. Depois dessas lutas, os trabalhadores saem delas melhor organizados e com u maior nível de consciência de classe. Durante as greves e manifestações, a classe trabalhadora consolida e treina-se para outras batalhas de classe e também para as batalhas políticas mais importantes e mais vitais que depois virão. O sindicalismo revolucionário pode unir praticamente qualquer anti- capitalista situado à esquerda, enquanto o anarco-sindicalismo implica que tos membros do movimento partilhem uma visão anarquista. Pessoalmente, não considero que o anarco-sindicalismo seja contraditório com qualquer outra forma de anarquismo social. O anarco-sintetismo é uma escola de pensamento que combina o anarco-comunismo como ideal, o anarco-sindicalismo como método de se chegar a esse ideal e o anarco-individualismo como a base a partir da qual avalia as suas acções.
Versão curta e adaptada da entrevista que pode ser lida na integra aqui: http://revolution-news.com/ukrainian-anarchist-dispels-myths-surrounding-euromaidan-protests-warns-of-fascist-influence/
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